"O amor é o ridículo da vida. A gente procura nele uma pureza impossível, uma pureza que está sempre se pondo. A vida veio e me levou com ela. Sorte é se abandonar e aceitar essa vaga ideia de paraiso que nos persegue, bonita e breve, como borboletas que só vivem 24 horas. Morrer não doi."


Cazuza

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Motivo

- João, o senhor está preso.

Na porta de João, estava parado um moço de baixa estatura, dentuço, com cabelos finos e negros cuidadosamente penteados para o lado e presos com gel, óculos quadrados e entortados por causa de suas altas orelhas e bochechas estranhamente avermelhadas; segurava uma maleta que parecia estar vazia e vestia uma blusa branca de botões pequenos, uma calça social preta, que aparentava caber dois dele, com uma gravata cor de mostarda desajeitadamente colocada pela gola e sapatos enormes.

- Preso? Mas o que foi que eu fiz?

- O que importa o que você fez?

- Como assim o que importa o que eu fiz? Ora, tudo!

- O que importa agora é que está preso, o que você fez ou deixou de fazer não vai mudar isso. - o homúnculo atravessa a sala e se instala perto da janela.

- Como assim não vai mudar? Mas é claro que vai mudar! Eu não fiz nada! - João o seguiu.

- Então.

- Então o quê?

- Então o que o quê?

- Oras!

- Você deixou de fazer, e isso não vai mudar o fato de estar preso.

- Han? Quê? Aliás, quem é você? - João então reparava na aparência esquisita do sujeito.

- Isso também não importa.

- Argh! Não me deixe nervoso! Claro que importa!

- Isso só vai piorar a situação, senhor João. Tente manter a calma.

- Quem é você para me mandar manter a calma!? E se estou preso ou não? Nem um uniforme de policial você tem!

- E eu preciso de uniforme?

- Claro que precisa!

- Isso mudaria o fato de você ter cometido um crime?

- Não mudaria mas..

- Então pronto! Resolvido. - rapidamente pega uma mão de João, agora distraído e pensativo.

- Mas eu não cometi crime algum!!!! - ele arranca a mão quase presa nas algemas.

- Calma senhor, procure manter a calma.

- Como vou manter a calma se o senhor me aparece aqui, em minha calma residência e me acusa de algo que não fiz?!

- Se o senhor deixou de fazer, a culpa não é minha.

- Mas eu não fiz nada de errado, fiz tudo certo, de acordo com as leis, ve se me entende?

- Não entendo, senhor. Ou o senhor fez, ou não fez. Decida-se.

- Han?! Que diabos!

- Senhor, não resista. Vamos, dê-me suas mãos para eu algema-las - tenta alcançar novamente, em um gesto atrapalhado, a mão do homem. Este possuía uma estatura que poderia se dizer o triplo da sua. 

- Eu?! - ele se afasta com um longo passo.

- Não, senhor. Eu.

- Ah basta! Agora me vem com ironia?! - João voltou 'a mesma posição de antes, apontando o dedo na cara do moço - Olha, não falo mais nada sem a presença do meu advogado.

- Ok.

-...

-...

- Você não vai fazer nada??

- O que eu posso fazer? Pretendia ficar quieto enquanto seu advogado não estivesse presente.. Então..

- Ah! Mas não é possível.. Isso é ridículo!

- Claro que é. Estou demorando demais aqui, senhor. Poderia ser mais rápido?

- Você não vai me prender!

- Senhor, colabore, vamos. - avança de novo em uma nova tentativa 'a mão de João.

- DÁ PARA PARAR COM ISSO?? - João recolhe a mão.

- ... - o homem o encara curioso.

- Mas por que quer me prender??

- La vem o senhor de novo.. Isso não importa!

- Céus! Isso é absurdo! Olha, se me der o motivo pelo qual quer me por atrás das grades, eu me rendo, ok?

- Certo. 

- Certo. 

- Combinado?

- Sim, combinado.

- Então tá.

- E qual seria, criatura de Deus?

- ...

- Por que está calado?

- Porque eu não tenho motivos.

- Ahá!

- Então o senhor está preso.

- Como assim?

- Eu lhe dei o motivo. - ele cruza os braços.

- Que motivo?

- O motivo. - pisca os olhos duas vezes, parecendo um tique nervoso - O que não tenho motivo.

- Mas isso não é um motivo.

- O "motivo" pelo qual o senhor está sendo preso é porque eu não tenho motivo. O motivo já é um motivo. Entendeu?

- Que loucura! O que você está falando não está fazendo sentido algum.

- Senhor, toda essa sua posição de defesa pode ser usada contra você no julgamento.

- Ah, então eu terei um julgamento? E qual será o veredicto? 

- Senhor, o que exatamente isso quer dizer?

- Isso o quê?

- "Veredicto". - faz sinal de aspas.

- Como assim você não sabe?

- Ué, e eu preciso saber de tudo?

- Ah, mas não é possível! Nosso papo encerra por aqui.

- Sim, então de-me os pulsos.

- Grrrrr.. De acordo com a lei VOCÊ cometeu crimes! Como o fato de estar invadindo minha casa. - ele da um passo a frente.

- mas senhor..

- E quem deve ser preso é você! - aponta no rosto do outro, agora na ponta dos pés, ficando mais alto ainda.

- Senhor.. Está agindo de forma imprudente e infantil. - este se recolhe, ficando mais baixo.

- De-me essas algemas, deixa ver.

- Não, senhor. Não pode fazer isso.

- Ah não, é?? - outro passo.

- Senhor, não pode brincar com as minhas algemas.

- Certamente que não, mas isso não importa, né? - João as arranca das mãos do homem.

- Senhor, calma.. Isso..

- Olha como ficam lindas... no seu bracinho! - João as tranca e joga a chave pela janela.

- Céus! Senhor, olha, não há razões para se estressar..

- Já viu como é linda a vista da minha janela? Hehehe

- Sim, senhor, senhor. Não preciso ver de novo. O que acha de me soltar?

- O que acha de ir buscar a chave?

- Ótimo! O senhor poderia abrir a porta pra mim e...

- Ah! Assim demora muito, SENHOR. Por que não pega um atalho?

- At..Atalho?? 

- Issssssso.. - fala lentamente, sua cara vira sombra.

- Senhor, é só que..

- CALA! Olha como é alto aqui em cima, viu?

- Isso me da vertigens, senhor..

- Será que é legal voar?

- Senhor, o senhor não está pensando em..

- HE HE HE.

- Calma, você não entendeu, foi tudo um mal entendido, senhor.

- Um mal entendido, né?

- É! Isso! Uma brincadeira! Senhor.. Não me olha assim, está me assustando..

- Eeeeeeeeeeu? - João sufocava o braço do outro.

- Sim. E será que tem como soltar um pouquinho meu braço? É que eu não consigo mais sentir minh.. 

- CALADO &#$%@&$#%*!

- Mas é só um..

João empurra o pobre homem pela janela com toda força.

- mal entendidooooooooo.....

Nesse momento, a porta é escancarada e uma enorme multidão de parentes entram em sua casa.

- SURPRESA!!!

João pára perplexo e observa a cena: muitas pessoas vestidas com chapéus de aniversário, balões e apitos. Seu chefe também estava lá, e vinham para comemorar a promoção surpresa que ele acabara de ganhar.

Um silêncio. As pessoas em posições paralisadas, procuravam pelo homúnculo.

- Aliás, João.. Onde está aquele homemzinho simpático? - a boca intacta, o sorriso congelado, e os olhos o procuravam.


Baseado em O Processo de Fran Kafka