- João, o senhor está preso.
Na porta de João, estava parado um moço de baixa estatura, dentuço, com cabelos finos e negros cuidadosamente penteados para o lado e presos com gel, óculos quadrados e entortados por causa de suas altas orelhas e bochechas estranhamente avermelhadas; segurava uma maleta que parecia estar vazia e vestia uma blusa branca de botões pequenos, uma calça social preta, que aparentava caber dois dele, com uma gravata cor de mostarda desajeitadamente colocada pela gola e sapatos enormes.
- Preso? Mas o que foi que eu fiz?
- O que importa o que você fez?
- Como assim o que importa o que eu fiz? Ora, tudo!
- O que importa agora é que está preso, o que você fez ou deixou de fazer não vai mudar isso. - o homúnculo atravessa a sala e se instala perto da janela.
- Como assim não vai mudar? Mas é claro que vai mudar! Eu não fiz nada! - João o seguiu.
- Então.
- Então o quê?
- Então o que o quê?
- Oras!
- Você deixou de fazer, e isso não vai mudar o fato de estar preso.
- Han? Quê? Aliás, quem é você? - João então reparava na aparência esquisita do sujeito.
- Isso também não importa.
- Argh! Não me deixe nervoso! Claro que importa!
- Isso só vai piorar a situação, senhor João. Tente manter a calma.
- Quem é você para me mandar manter a calma!? E se estou preso ou não? Nem um uniforme de policial você tem!
- E eu preciso de uniforme?
- Claro que precisa!
- Isso mudaria o fato de você ter cometido um crime?
- Não mudaria mas..
- Então pronto! Resolvido. - rapidamente pega uma mão de João, agora distraído e pensativo.
- Mas eu não cometi crime algum!!!! - ele arranca a mão quase presa nas algemas.
- Calma senhor, procure manter a calma.
- Como vou manter a calma se o senhor me aparece aqui, em minha calma residência e me acusa de algo que não fiz?!
- Se o senhor deixou de fazer, a culpa não é minha.
- Mas eu não fiz nada de errado, fiz tudo certo, de acordo com as leis, ve se me entende?
- Não entendo, senhor. Ou o senhor fez, ou não fez. Decida-se.
- Han?! Que diabos!
- Senhor, não resista. Vamos, dê-me suas mãos para eu algema-las - tenta alcançar novamente, em um gesto atrapalhado, a mão do homem. Este possuía uma estatura que poderia se dizer o triplo da sua.
- Eu?! - ele se afasta com um longo passo.
- Não, senhor. Eu.
- Ah basta! Agora me vem com ironia?! - João voltou 'a mesma posição de antes, apontando o dedo na cara do moço - Olha, não falo mais nada sem a presença do meu advogado.
- Ok.
-...
-...
- Você não vai fazer nada??
- O que eu posso fazer? Pretendia ficar quieto enquanto seu advogado não estivesse presente.. Então..
- Ah! Mas não é possível.. Isso é ridículo!
- Claro que é. Estou demorando demais aqui, senhor. Poderia ser mais rápido?
- Você não vai me prender!
- Senhor, colabore, vamos. - avança de novo em uma nova tentativa 'a mão de João.
- DÁ PARA PARAR COM ISSO?? - João recolhe a mão.
- ... - o homem o encara curioso.
- Mas por que quer me prender??
- La vem o senhor de novo.. Isso não importa!
- Céus! Isso é absurdo! Olha, se me der o motivo pelo qual quer me por atrás das grades, eu me rendo, ok?
- Certo.
- Certo.
- Combinado?
- Sim, combinado.
- Então tá.
- E qual seria, criatura de Deus?
- ...
- Por que está calado?
- Porque eu não tenho motivos.
- Ahá!
- Então o senhor está preso.
- Como assim?
- Eu lhe dei o motivo. - ele cruza os braços.
- Que motivo?
- O motivo. - pisca os olhos duas vezes, parecendo um tique nervoso - O que não tenho motivo.
- Mas isso não é um motivo.
- O "motivo" pelo qual o senhor está sendo preso é porque eu não tenho motivo. O motivo já é um motivo. Entendeu?
- Que loucura! O que você está falando não está fazendo sentido algum.
- Senhor, toda essa sua posição de defesa pode ser usada contra você no julgamento.
- Ah, então eu terei um julgamento? E qual será o veredicto?
- Senhor, o que exatamente isso quer dizer?
- Isso o quê?
- "Veredicto". - faz sinal de aspas.
- Como assim você não sabe?
- Ué, e eu preciso saber de tudo?
- Ah, mas não é possível! Nosso papo encerra por aqui.
- Sim, então de-me os pulsos.
- Grrrrr.. De acordo com a lei VOCÊ cometeu crimes! Como o fato de estar invadindo minha casa. - ele da um passo a frente.
- mas senhor..
- E quem deve ser preso é você! - aponta no rosto do outro, agora na ponta dos pés, ficando mais alto ainda.
- Senhor.. Está agindo de forma imprudente e infantil. - este se recolhe, ficando mais baixo.
- De-me essas algemas, deixa ver.
- Não, senhor. Não pode fazer isso.
- Ah não, é?? - outro passo.
- Senhor, não pode brincar com as minhas algemas.
- Certamente que não, mas isso não importa, né? - João as arranca das mãos do homem.
- Senhor, calma.. Isso..
- Olha como ficam lindas... no seu bracinho! - João as tranca e joga a chave pela janela.
- Céus! Senhor, olha, não há razões para se estressar..
- Já viu como é linda a vista da minha janela? Hehehe
- Sim, senhor, senhor. Não preciso ver de novo. O que acha de me soltar?
- O que acha de ir buscar a chave?
- Ótimo! O senhor poderia abrir a porta pra mim e...
- Ah! Assim demora muito, SENHOR. Por que não pega um atalho?
- At..Atalho??
- Issssssso.. - fala lentamente, sua cara vira sombra.
- Senhor, é só que..
- CALA! Olha como é alto aqui em cima, viu?
- Isso me da vertigens, senhor..
- Será que é legal voar?
- Senhor, o senhor não está pensando em..
- HE HE HE.
- Calma, você não entendeu, foi tudo um mal entendido, senhor.
- Um mal entendido, né?
- É! Isso! Uma brincadeira! Senhor.. Não me olha assim, está me assustando..
- Eeeeeeeeeeu? - João sufocava o braço do outro.
- Sim. E será que tem como soltar um pouquinho meu braço? É que eu não consigo mais sentir minh..
- CALADO &#$%@&$#%*!
- Mas é só um..
João empurra o pobre homem pela janela com toda força.
- mal entendidooooooooo.....
Nesse momento, a porta é escancarada e uma enorme multidão de parentes entram em sua casa.
- SURPRESA!!!
João pára perplexo e observa a cena: muitas pessoas vestidas com chapéus de aniversário, balões e apitos. Seu chefe também estava lá, e vinham para comemorar a promoção surpresa que ele acabara de ganhar.
Um silêncio. As pessoas em posições paralisadas, procuravam pelo homúnculo.
- Aliás, João.. Onde está aquele homemzinho simpático? - a boca intacta, o sorriso congelado, e os olhos o procuravam.
Baseado em O Processo de Fran Kafka